Era uma vez uma criança que morava numa casa simples,mas aconchegante e de jardim oponente, cravada nos confins de Realengo. Luís Orlando Bittencourt,a criança serelepe,ia todos os dias à escola assistir,com afinco,às aulas. Gostava muito das aulas de gramática,a ponto de não retirar seus olhos verdes--que podiam ser confundidos facilmente com bolinhas de gude--das curvas amarelas de giz delineadas pela dedicada professora sobre o quadro negro.
Luís Orlando,depois de um tempo,chegou à adolescência. Mudara drasticamente:sua mente estava dominada pelo desestímulo ao estudo e pela sacanagem típica.
Chegara o dia treze de setembro de 1951,o dia da aula de literatura que marcaria a vida de Luís profundamente para todo o sempre. A falta de vontade do moleque já incomodava,de longe, a professora;até que,um belo dia,a docente Cláudia passou um exercício pedindo aos alunos para fazerem uma resenha crítica de uma obra de Machado de Assis da qual o estudante mais gostasse. Luís entregara,com certo atraso,o trabalho. Durante a correção,a professora Cláudia voltou-se para o rosto pálido de Luís e disse:
--Tem de ser mais atento à ortografia,meu querido. Trema na lingüiça!
E completou:
--As idéias precisam ser acentuadas. Estude mais!
Para quem era metido a machão e odiava estudar,essa história de "Trema na lingüiça" e de acentuar idéias era demais para ele. Isso lhe causou tantos traumas que ele chorou por uma semana,com pausas de duas horas apenas para o almoço.
Quando lia ou escrevia palavras com trema ou ditongo aberto,ele se enrubrecia todo e até tinha vertigens. Tremer na lingüiça é uma pinóia!,pensava Luís nessas situações.
A duras penas,concluiu o ensino médio e prestou o vestibular. Letras,escolheu o de menor traumatizado. Não por afinidade com tal curso,mas por uma meta de vida que pôs na cabeça e nunca mais tirou.
Fez graduação,mestrado e doutorado em lingüística--logo ela,a lingüística!
Virou escritor respeitado;conseguiu uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Com sua determinação,conseguiu tornar-se presidente da instituição. Apesar disso,seu trauma de adolescência não passou nem perto de passar,a despeito de tanto tempo.
Com vários catedráticos sob seu comando,articulou um plano ousado com eles:ELIMINAR O TREMA E OS ACENTOS AGUDOS DE DITONGOS ABERTOS(e o que mais os outros iluminados acadêmicos quisessem) das regras do português.
Reduzir o número de hífens também era primordial para Luís Orlando;hífen lembrava hímen,o hímen prazeroso daquela mulher que o traiu e quebrantou o seu já fragilizado coração.
Seu plano era ousado:ele precisava de apoio dos políticos engravatados do Planalto Central. Luís foi até lá e,com sua doce oratória,convenceu todos. Até o presidente da república,que também,por ironia do destino,era um Luís.
Convenceu também líderes de outras nações falantes da língua de Camões que,juntos e no poder da canetada,impuseram a milhões a imagem do espelho das frustrações de Luís. Eça não!
Assim,Luís pôde ser feliz para sempre. Não se pode dizer o mesmo do pobre idioma.