domingo, 13 de outubro de 2019


A Indesejadinha
(Yan Marinho)

I
  Certa vez, um conhecido resolveu me contar sobre uma menina que morava em Campo Grande (do Rio de Janeiro, hein!?) e trabalhava com ele numa loja de celulares. Com os olhos arregalados e uma voz cheia de ar e tesão, ele me perguntava:
--Flávio, tu conhece a Priscilla, uma mina que trabalha comigo?
Como eu nunca conheci—ou não me lembrava de nenhuma—uma Priscilla funcionária de loja de celular­, virei para ele com cara de um espantado que não estava espantado e respondi a ele:
--Não, cara: não conheço.
  Ouvindo a minha resposta, ele se animou: virou seu rosto quase pretinho para a frente do meu e começou a contar:
--Aquele cabelão dela que vai nas costas; aquele shortinho que ela usa no uniforme mostrando a popa da bunda; aquela porra daquele sorriso matador...Puta que pariu! Rendo fácil pra ela...Ela pára a loja e deixa do chefe aos clientes tudo maluco.
Depois, puxou do bolso do bermudão azul o celular, acendeu a tela e mostrou a foto da tal Priscilla. Confesso que também me rendi e refém virei por alguns minutos. Enquanto ele mostrava a foto, lamentava, já com a voz em outro tom:
--Maluco, já mandei mensagem pra ela umas vinte vezes. Ela sempre diz que não tem tempo pra me ver...
Ao ouvir aquilo e ver as mensagens, minha paciência já baixou ao nível da escrotidão máxima, até que respondi:
--Ou ela tá te enrolando, tá com tempo sobrando e não quer te ver porra nenhuma!
--Tu tem razão, cara: essa mina tá é me enrolando. Mas eu não vou desistir de jeito nenhum...
Nessa hora, o caixa do banco o chamou para o atendimento; ele se levantou, bateu a mão dele com a minha em cumprimento e foi para o guichê.
Atenderam-me logo depois e segui para casa, porque eu não tinha nada mais para fazer naquele dia.


II
   Já eram dez da manhã do dia seguinte quando eu coloquei sebo na canela e corri loucamente para chegar à estação de trem e não perdê-lo (eu ganharia tranqüilamente os cem metros do Usain Bolt e do Asafa Powell com pelo menos uns três segundos de vantagem dos dois naquele dia!). Não adiantou nada: quando eu paguei a passagem e depois atravessei a catraca, já via os vagões na minha frente mexendo-se para a minha esquerda e indo para a Central do Brasil. Azar o meu!
Como o diacho do trem já tinha passado mesmo, não sobrou alternativa a não ser esperar na plataforma uns quinze minutos até vir o próximo—ou ir embora, mas eu não podia fazer isso de jeito nenhum.
Depois dessa eternidade tão curta, o trem chegou, parou e abriu suas portas diante de mim. Entrei um pouco rápido para não ser esmagado pela pressa de quem estava atrás de mim e fiquei em pé na frente de uma janela ensolarada, já que não havia lugar para sentar. De repente, olhei para uma certa menina, que teve mais sorte do que eu e estava sentada: shortinho mostrando um pouquinho que era bastante, cabelão para mais de metro e o tal sorriso matador. A foto de perfil (do In...) que meu conhecido mostrou enganava, mas não deixava a menor dúvida: era Priscilla mesmo que estava ali.

Ela pegou o celular da bolsa marrom, apertou o lado direito do aparelho e o acendeu.

O bicho da curiosidade me mordeu, aquele mesmo que faz muita gente virar os olhos e até o pescoço para ver o que está nas telas dos celulares dos outros nos trens, ônibus, metrôs e tantos outros lugares que só Deus sabe; aproveitei que ela sentou de um jeito tal que ela não podia me ver e fiz a observação curiosa por um bom tempo. Uma lista com umas cem mensagens—a maioria esmagadora, umas oitenta e tantas, da rapaziada louca para tirar uma provinha da fatalíssima morena—apareceu diante dos meus olhos e dos dela (apareceu bem mais para os meus que para os dela, garanto). Todo mundo ali naquela tela colorida e brilhante era Alberto, o meu conhecido; todo mundo ali tinha amor e malícia, mas cada um com a sua desconhecida medida dos dois.
O trem ora parava, ora andava fazendo um barulho seco e intermitente, parecendo uma curta rajada de tiros, vindo das rodas e acompanhado, vez ou outra, pelo chiado dos trilhos; chacoalhávamos à beça, mais que as bolinhas do sorteio da loteria. Enquanto isso, eu não tirava o olho (do celular) de Priscilla, a não ser rapidamente para dar uma disfarçada e admirar a belíssima paisagem que há, de ponta a ponta, nas linhas dos trens urbanos do estado do Rio de Janeiro.


A estação de Bangu já se aproximava de nós. A oportunidade de sentar se aproximava de mim: muita gente desembarcava nesse bairro, mais que nos outros por que eu tinha passado até então, deixando muitas cadeiras livres para esses mortais que seguiriam bem mais adiante. Sorte a minha!
Uma das cadeiras era justamente a que estava ao lado de Priscilla. Na janela, ainda por cima! Não perdi tempo: corri—naquela hora, bem menos do que o que eu havia corrido antes para chegar à estação de Campo Grande—e sentei-me ali.
Eu não era o caso de Benjamin Button, mas continuei sendo curioso. Mas eu tinha de ser um pouco mais comedido, discreto que antes: afinal, ia dar muito na cara, ela ia perceber e, provavelmente, ficaria revoltada comigo.
Ela me olhou rapidamente poucos segundos depois de eu ter sentado ali. Congelei. Virei picolé de gente, com ajudinha a mais do ar-condicionado. Contudo, meus pensamentos continuaram, e logo pensei que isso já tinha acontecido comigo em situações parecidas com outras pessoas, e que nada tinha a ver com uma percepção dela sobre a minha curiosidade. Quase voltei ao (meu) normal.

Ela olhou de novo logo depois. Dessa vez, pensei:--Puta que o pariu! Ela percebeu.

E realmente tinha percebido, mas ela não se revoltou: sorriu contidamente. Seu sorriso era dito matador, mas foi ele que me resgatou de vez da pequena morte que eu tivera ali. Rindo, e com a voz veludosa e baixada pela timidez, ela me disse:
--Oi.
As poucas nuvens do céu daquele dia pareciam pairar sob o sol da minha criatividade; estava nervoso, afinal, e ainda me acalmando. Assim, usei as mesmas palavras que ela para lhe responder.
Mais à vontade, contou-me sobre alguns detalhes da sua vida: era uma católica da média brasileira; vinha com ela uma Bíblia de bolso, já surrada pelo tempo e pelo intenso uso, pois ela a recebera da mãe ainda nas aulas de Catequese para a Primeira Eucaristia, mais ou menos com uns oito anos (ela tinha vinte e cinco), e um Rosário que mais enfeitava a bolsa do que acompanhava uma recitação dos Mistérios. Fazia curso técnico em Madureira e complementava a renda também como vendedora de cremes para os pés para ajudar os pais e o irmão de dez anos em casa.
Passada essa parte, não demoraria muito para que as lamentações viessem. Sem o muro do medo do desconhecido, ela despejou pelas belas vias de sua boca aquilo que devia estar alojado em seu imenso peito há um bom tempo:
--Olha, às vezes eu me sinto tão indesejada. Eu olho para o lado e vejo que ninguém me quer, ninguém tem desejo de me amar. Não sei mais o que faço!...

 Eu trouxe as sobrancelhas mais para baixo e fechei a testa disfarçadamente—mas, provavelmente, ela notou mesmo assim. Eu sabia que aquilo ali não era a realidade; apesar de eu mal a conhecer, sua caixa de mensagens no celular não mentia e me gritava com seu brilho de tela:--Você dificilmente vai ver ou saber de uma mulher tão desejada em toda a sua vida!...
Mas eu não podia dizer a verdade: a pouca intimidade não deixava. Ao menos não diretamente. Imagine se ela percebe que eu olhei o celular dela de longe!...
Tive ali pouquíssimos segundos para florear, quase que liricamente, um discurso sincero, mas que não a deixasse magoada com esta pobre alma que ela acabara de conhecer.
Assim eu fiz; aproveitando um pouco de sua fé cristã e de suas feições, que me pareciam muito caridosas, virei o rosto, olhei-lhe bem nos olhos e lhe disse:
--Garota, eu vou ser bem sincero contigo: você jamais estará sozinha. A Trindade, os anjos na sua hierarquia, os santos e a Virgem Maria sempre vão te acompanhar. Quanto aos deste mundo: já tentou olhar para as pessoas com mais atenção?  Contemplar cada gesto, cada olhar atentamente, como se fosse o último? Pois tente. Se você recebeu uma mensagem de um moleque te elogiando—moderadamente—,admire-a e responda ao cara. Você é exclamativa, chama a atenção por onde passa; dificilmente não existe alguém te querendo.
Depois disso, ela riu; seu riso tinha o volume baixado pela vergonha, e era prolongado pela falta do que dizer para mim. Passou mais ou menos um minuto, até que as palavras vieram novamente:
--Cara, valeu pelas palavras. Vou olhar melhor pras pessoas—e mais cuidadosamente, até pra não cair na lábia de caras que só querem uma noite na cama e nada mais—e aumentar minha fé. Se for olhar bem, é bem verdade isso aí que tu falou sobre os anjos, santos, Maria e Jesus; nunca estamos sozinhos!
--Você falou dos aproveitadores. É exatamente isso: também não é para ser aberta a qualquer malandro que chegar com papinho para te botar em cima da cama e da vara e, no dia seguinte, te abandonar na esquina mais próxima e nunca mais olhar na tua cara.
A partir daí, ela gargalhou, pois eu tinha ganhado subitamente um sentimento de intimidade de décadas de convivência; esqueci completamente a vergonha e que eu a tinha acabado de ver pela primeira vez pessoalmente.

O trem já vinha parando; a estação de Madureira se aproximava rapidamente, mas cada vez mais lento. Priscilla se levantou; era ali que ela tentava qualificar-se um pouco mais.
Despediu-se de mim com um breve aceno e saiu pelo lado direito da composição. Eu segui para a Central.
Dali, eu fiquei um bom tempo sem saber se ela só se impressionou naquele momento com o que eu disse ou se houve transformação real e profunda na vida dela. O que eu  esperava era só que ela aumentasse sua fé e passasse a se sentir menos indesejadinha...